Continuação
Philippe Perrenoud
Parte II
II. Há competências e competências
Ao invés de travar um combate contra o conceito de competência e de demonizá-lo porque as empresas o defendem, seria melhor, antes de mais nada, dar-se conta de que as empresas modernas estão interessadas – bem mais do que a escola – em ter clareza sobre as relações entre os saberes e a ação eficaz no trabalho. O interesse pelas competências insere-se em um contexto de concorrência e de busca de produtividade. E é exatamente esse contexto que obriga a compreender melhor o trabalho humano, a inteligência no trabalho, o que, na tarefa, na organização do trabalho, nas prescrições ou na cultura do ambiente, impede ou favorece a mobilização dos conhecimentos teóricos ou procedimentais na prática. Reduzir o mundo econômico à exploração máxima de uma força de trabalho pouco qualificada já não faz sentido hoje, ainda que o capitalismo descrito por Marx subsista em uma parte do planeta. Agora, não é mais a força pura e simples, mas a inteligência dos operadores que assegura a produtividade das indústrias de alta tecnologia e do setor terciário.
Portanto, seria ingênuo combater o método das competências sob o pretexto de que o mundo econômico sonha com robôs dóceis, com autômatos bem programados. A realidade é mais complexa. As empresas têm necessidade de um investimento subjetivo, a nova organização do trabalho requer de uma parcela crescente dos trabalhadores que assumam responsabilidades, façam projetos, envolvam-se, sejam cooperativos, imaginativos, autônomos…
As empresas não são de modo nenhum desinteressadas. Não é por humanismo que elas já não esperam mais da escola trabalhadores imediatamente adaptados a um posto de trabalho, definidos e com bom desempenho em seu posto. A evolução das tecnologias e dos mercados em pouco tempo torna esses trabalhadores improdutivos. Naturalmente, subsistem, em particular nas regiões menos desenvolvidas do planeta, “famélicos da terra”, trabalhadores que vendem sua força por um salário miserável e dos quais não se requer nem que reflitam nem que tomem iniciativas. Não é esta fração da mão de obra que justifica o êxito do método das competências no mundo econômico.
Portanto, a crítica deve ser mais sutil, tem de compreender que as empresas compram a inteligência, o senso de responsabilidade, o projeto pessoal e a capacidade de iniciativa, não por idealismo, mas por cálculo. Nisto reside a ambiguidade : a economia requer competências de alto nível, o que, sob certos aspectos, parece reviver as ambições mais elevadas de uma escola humanista e desejosa de dar a cada pessoa os meios para pensar por si mesma.
Por isso, é importante examinar os currículos muito de perto, para compreender que tipo de seres humanos eles pretendem formar. Seria fácil opor a autonomia ao conformismo, o espírito crítico à obediência cega. As comparações são mais delicadas quando se trata de distinguir uma “verdadeira” autonomia de uma autonomia a serviço da cultura empresarial, um “verdadeiro” espírito crítico de um espírito crítico enquadrado, excluindo de seu campo certos valores e certas práticas.
Atualmente, a leitura dos currículos deve ser feita à luz da questão : de que lado eles estão ? Tentei (Perrenoud, 2001a, retomado em 2001b) definir as competências de um ator autônomo em diversos campos sociais :
1. Saber identificar, avaliar e fazer valer seus recursos, seus direitos, seus limites e suas necessidades.
2. Saber, individualmente ou em grupo, criar e comandar projetos, desenvolver estratégias.
3. Saber analisar situações, relações, campos de força de maneira sistêmica.
4. Saber cooperar, agir em sinergia, participar de um coletivo, compartilhar uma liderança.
5. Saber construir e estimular organizações e sistemas de ação coletiva de tipo democrático.
6. Saber gerar e superar os conflitos.
7. Saber jogar com as regras, utilizá-las, elaborá-las.
8. Saber construir ordens negociadas para além das diferenças culturais.
Evidentemente, pode-se debater esta concepção da autonomia. Supondo que a consideremos aceitável e insuspeita de reforçar o poder dos dominantes (que de qualquer modo dispõem dessas competências, mesmo que a escola não as desenvolva), pode-se utilizar esse trabalho para proceder a uma análise crítica dos currículos orientados para as competências.
É claro que a autonomia não é o único desafio. Mais do que denunciar em bloco todos os currículos orientados para a competência, denunciemos aqueles que visam competências alienantes, a serviço dos poderosos e dos ricos desse mundo, competências para adaptar-se ao mundo tal como ele é, para ter seu lugar nele, para tornar-se um “agente inteligente”, mais do que um ator social integral. Examinemos detalhadamente esses textos para ver se eles preparam um ser livre ou submisso.
Seria grave que os adeptos da esquerda, assustados com os fundamentos neoliberais de certos programas orientados para as competências, se tornassem guardiães do saber pelo saber. O saber dá poder apenas àqueles que aprendem a utilizá-lo nas relações sociais.
III. Levar em conta o currículo real e as desigualdades
Os textos não são nada mais do que textos. Pode-se ter um programa magnífico, mas cuja realização plena diz respeito apenas a uma minoria no seio de cada geração.
Na maior parte dos sistemas educativos, as finalidades da escola e as intenções subentendidas nos currículos são bastante honrosas. O ponto fraco é a enorme desigualdade em sua realização, em primeiro lugar na interpretação que se faz e que determina o “currículo real” (Perrenoud, 1995), depois, e sobretudo, nas aprendizagens efetivas dos alunos. Como sempre, são os “herdeiros”, as crianças mais favorecidas que atingem os objetivos, sejam quais forem.
Talvez seja esse o grande perigo dos programas orientados para as competências : não sustentar suas promessas, como também não proporcionar sólidos conhecimentos, nem verdadeiros conhecimentos àqueles que mais necessitam deles (2001b). É por isso que os programas, sejam antigos ou novos, orientados para os conhecimentos ou para as competências, deveriam ser analisados sempre com referência aos meios dispensados para serem postos em prática com alunos que não aprendem, qualquer que seja o programa e a pedagogia. Isto passa pelo efetivo das classes, pelos equipamentos, pelos salários e o estatuto dos professores, mas também por uma organização do trabalho escolar que permita a diferenciação pedagógica – por exemplo, os ciclos de aprendizagem plurianuais – e por dispositivos de formação, de desenvolvimento profissional e de acompanhamento que apoiem a ação dos professores.
Ao invés de estigmatizar os programas, seria melhor apontar as incoerências dos governos que os promulgam e que, no entanto, não proporcionam os meios para que sejam aplicados, reforçando assim as desigualdades. Qualquer que seja o currículo, a pedagogia diferenciada e a avaliação formativa (Perrenoud, 1999c, d) continuam na ordem do dia !
Referências
Perrenoud, Ph. (1995) Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar, Porto, Porto Editora.
Perrenoud, Ph. (1999 a) Construir as Competências desde a Escola, Porto Alegre, Artmed Editora.
Perrenoud, Ph. (1999 b) Construir é virar as costas aos saberes ?, Pátio. Revista pedagógica, n°11, novembro, pp. 15-19.
Perrenoud, Ph. (1999 c) Pedagogia Diferenciada, Porto Alegre, Artmed Editora.
Perrenoud, Ph. (1999 d) Avaliação. Da Excelência à Regulação das Aprendizagens, Porto Alegre, Artmed Editora.
Perrenoud, Ph. (2001 a) The Key to Social Fields : Competencies of an Autonomous Actor, in Rychen, D. S. and Sagalnik, L. H. (dir.) Defining and Selecting Key Competencies, Gottingen, Hogrefe & Huber Publishers, p. 121-149.
Perrenoud, Ph. (2001 b) Porquê construir competências a partir da escola ? Desenvolvimento da autonomia e luta contra as desigualdades, Porto, ASA Editores.
Perrenoud, Ph. (2001 b) A Pedagogia na Escola das Diferenças, Porto Alegre, Artmed Editora.
Perrenoud, Ph. (2002) A Prática Reflexiva no Ofício de Professor : Profissionalização e razão pedagógicas, Porto Alegre, Artmed Editora.
Perrenoud, Ph., Gather Thurler, M., De Macedo, L., Machado, N.J. e Allessandrini, C.D. (2002) As Competências para Ensinar no Século XXI. A Formação dos Professores e o Desafio da Avaliação, Porto Alegre, Artmed Editora.