O que fazer da ambiguidade dos programas escolares orientados para as competências?

 

Philippe Perrenoud

Parte I

O Brasil, Canadá (Quebec), vários países europeus (por exemplo, França, Portugal, Espanha, Bélgica) introduziram ou estão introduzindo desde o ensino fundamental programas orientados para as competências. Essas reformas curriculares :

  • são geralmente decididas ou assumidas por governos ou parlamentos de direita ou de centro-direita ;
  • são apoiadas por organizações internacionais como a OCDE ou o Banco Mundial ;
  • surgem no momento em que a noção de competência impõe-se no mundo das empresas, pondo em risco as escalas de qualificação, desfazendo as relações solidárias, justificando o “salário por mérito”.

Tudo se passa em um contexto de globalização, de mundialização e de neoliberalismo. De modo que, para uma parte da esquerda, impõe-se a conclusão : os programas orientados para as competências são uma invenção das classes dominantes e das forças conservadoras que comandam o planeta. Portanto, é preciso denunciá-los e combatê-los e, para isso, reafirmar o valor republicano dos saberes. Esquematizando, defender os saberes seria “de esquerda”, propor programas escolares orientados para as competências seria de “direita”.

Certamente, é justo perguntar-se o que escondem os novos currículos e a que classes sociais eles favorecem. Mas desconfiemos dos velhos esquemas. Todos os pesquisadores, todos os intelectuais e, sobretudo, todos os professores que participam das transformações dos sistemas educativos devem encontrar uma vereda entre uma imperdoável ingenuidade e uma paranóia paralisante.

Os historiadores dirão – daqui trinta ou cinquenta anos – se os programas orientados para as competências foram uma profunda regressão na emancipação das pessoas e no desenvolvimento democrático das sociedades ou, ao contrário, um progresso. Eles dirão também quem tinha razão, entre os que combateram e os que apoiaram essas reformas.

Hoje, não temos essa distância e devemos tomar posição sem saber a que exatamente nos opomos ou nos aliamos. O mais prudente, sem dúvida, é adotar uma atitude de esperar para ver, de não se engajar, de não se manifestar. Naturalmente, essa prudência permite preservar sua virtude, mas a história não foi feita por aqueles que esperam o fim da história para tomar partido.

Não pretendo, em algumas páginas, esgotar um problema complexo, mas desenvolver três ideias :

1. A oposição entre saberes e competências não é pertinente, pois os saberes constituem o fundamento das competências.

2. Tudo depende da natureza das competências visadas no ensino básico e de sua relação com as práticas sociais.

3. Julga-se o valor de um currículo, em última instância, não por suas meras intenções, nem por sua aplicação prática, mas pela proporção de alunos para os quais elas são realizadas.

Essas três ideias não permitem por si sós decidir se é preciso combater ou apoiar os programas orientados para as competências no Ensino Fundamental. Talvez elas ajudem a pensar de forma menos simplista.

 

I. As competências não substituem os saberes

 

Ouve-se dizer frequentemente que os programas orientados para as competências “sacrificam os saberes” para substituí-los por competências. Isto é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso. É verdadeiro apenas na medida em que desenvolver competências exige tempo de trabalho em classe e, consequentemente, obriga a fazer concessões quanto à extensão dos saberes ensinados. É nisto que reside a verdadeira escolha : pretende-se manter programas enciclopédicos, sem a preocupação de preparar os alunos para utilizá-los de outra forma que não seja sair-se bem nos exames ? Ou pretende-se ensinar menos saberes e usar o tempo para treinar sua mobilização e sua transposição para resolver problemas, tomar decisões, tocar projetos ?

 

Uma competência não é nada mais que uma aptidão para dominar um conjunto de situações e de processos complexos agindo com discernimento. Para isso, há duas condições a cumprir :

  • dispor de recursos cognitivos pertinentes, de saberes, de capacidades, de informações, de atitudes, de valores ;
  • conseguir mobilizá-los e pô-los em sinergia no momento oportuno, de forma inteligente e eficaz.

Enquanto a tradição enciclopédica acumula os saberes sem se perguntar muito quando, onde e porque os alunos poderão utilizá-los, o método das competências considera :

 1. que os saberes são ferramentas para a ação ;

2. que se aprende a usá-los, como as outras coisas.

Que os saberes sejam ferramentas para a ação não tem em si nada de vulgar, nem de utilitarista, no sentido pejorativo dessa palavra. A espécie humana é uma espécie atuante, o homo sapiens deseja compreender o mundo para dominá-lo, simbolicamente e na prática. A filosofia, a teologia, a geometria ou a astronomia, na Antigüidade, tinham fins pragmáticos. Uma parte das ciências contemporâneas, compreendida a pesquisa fundamental, visam dominar processos físicos, químicos, biológicos, psicológicos, econômicos ou sociais dos quais depende nossa vida na Terra. Na história da humanidade, o saber não é “meramente gratuito”. O mesmo ocorre na vida das pessoas : elas se empenham em aprender para melhor antecipar, dirigir, canalizar os processos naturais, psicossociais, e mesmo sobrenaturais, dos quais dependem seus interesses. Estes últimos não são exclusivamente econômicos e materiais. A saúde, o bem-estar, o amor, a saúde, o prazer, o equilíbrio mental dependem também da maneira como agimos.

 

Não há nada de vergonhoso em utilizar esses saberes para agir. Não há nenhuma razão para reduzir a ação a atos “prático-pragmáticos”. A ação é ao mesmo tempo cultural, educativa, política, sindical, artística, associativa, religiosa, sanitária, esportiva, científica, humanitária, etc. Sem esquecer o trabalho, a atividade humana por excelência, que seria falacioso desprezar por ser objeto de uma “exploração capitalista”. O trabalho é inicialmente o meio que os seres humanos desenvolvem para dominar a natureza e produzir aquilo de que necessitam. Em suma, ligar os saberes à ação e ao trabalho está no centro da existência individual e coletiva, e somente os ricos mais inconscientes podem-se permitir desprezar essa ligação, que torna sua existência possível.

O método das competências restabelece essa evidência : é certo que os saberes são “conquistas da humanidade”, mas eles têm tanto mais valor na medida em que se pode utilizá-los para dar sentido ao mundo e para orientar a ação. Pois bem, para utilizar esses saberes é preciso aprender, como qualquer outra coisa. A transposição, a mobilização, a sinergia de nossas aquisições não são dadas “fortuitamente”, sem esforço. Alguém pode ter um computador e ainda não saber utilizá-lo. Do mesmo modo, nossos recursos intelectuais pessoais – saberes, capacidades, informações, atitudes, valores -, ainda que estejam instalados em nosso cérebro, nem por isso estão imediatamente disponíveis para a ação.

Isto é particularmente verdadeiro para o que se aprende na escola, pois a tradição escolar insiste na restituição dos saberes assimilados (ou simplesmente memorizados) nas formas clássicas do exame, da prova escrita ou da chamada oral, mais do que na sua mobilização na ação. As modalidades de avaliação escolar não testam a transposição de conhecimentos e a escola não prepara isto. É esse o problema que os programas orientados para as competências criticam.

Para aprender a utilizar seus recursos intelectuais próprios, é preciso que um ser humano seja levado regularmente a colocar e a resolver problemas, a tomar decisões, a criar situações complexas, a desenvolver projetos ou pesquisas, a comandar processos de resultado incerto. Se o que se pretende é que os alunos construam competências, essas são as tarefas que eles têm de enfrentar, não uma vez ou outra, mas toda semana, todo dia, em todas as formas de configurações.

Este investimento não desvaloriza os saberes, ao contrário, confere-lhes um valor adicional. Essa preocupação com o uso dos saberes contribui também, por antecipação, para dar sentido a eles, respondendo desse modo a um dos fatores do fracasso escolar. De fato, muitos alunos têm dificuldade de aprender coisas difíceis se não compreendem “para que servem”. Responder-lhe “Você vai compreender mais tarde” não passa de um engodo. O método das competências cria vínculos entre os saberes escolares e as práticas sociais. Resta saber quais ! 

… Continua

 

Referências

 

Perrenoud, Ph. (1995) Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar, Porto, Porto Editora.

 

Perrenoud, Ph. (1999 a) Construir as Competências desde a Escola, Porto Alegre, Artmed Editora.

 

Perrenoud, Ph. (1999 b) Construir é virar as costas aos saberes ?, Pátio. Revista pedagógica, n°11, novembro, pp. 15-19.

 

Perrenoud, Ph. (1999 c) Pedagogia Diferenciada, Porto Alegre, Artmed Editora.

 

Perrenoud, Ph. (1999 d) Avaliação. Da Excelência à Regulação das Aprendizagens, Porto Alegre, Artmed Editora.

 

Perrenoud, Ph. (2001 a) The Key to Social Fields  : Competencies of an Autonomous Actor, in Rychen, D. S. and Sagalnik, L. H. (dir.) Defining and Selecting Key Competencies, Gottingen, Hogrefe & Huber Publishers, p. 121-149.

 

Perrenoud, Ph. (2001 b) Porquê construir competências a partir da escola ? Desenvolvimento da autonomia e luta contra as desigualdades, Porto, ASA Editores.

 

Perrenoud, Ph. (2001 b) A Pedagogia na Escola das Diferenças, Porto Alegre, Artmed Editora.

 

Perrenoud, Ph. (2002) A Prática Reflexiva no Ofício de Professor  : Profissionalização e razão pedagógicas, Porto Alegre, Artmed Editora.

 

Perrenoud, Ph., Gather Thurler, M., De Macedo, L., Machado, N.J. e Allessandrini, C.D. (2002) As Competências para Ensinar no Século XXI. A Formação dos Professores e o Désafio da Avaliação, Porto Alegre, Artmed Editora.