Não desejo a escola para o pior dos meus inimigos, imagina para meus filhos.

Nesta última segunda-feira – e, para esse texto, especificar o dia exato não importa – enquanto entro na sala de aula, dois alunos estão fazendo um snapchat de uma menina dormindo em classe. Com um pouco mais de cinco anos de experiência em sala de aula, tento levar no humor, digo que isso é normal, e que todo mundo dorme em algum lugar inesperado. E, como a maioria dos adolescentes, sempre com a resposta na ponta da língua, me rebatem dizendo algo como: EU NUNCA FARIA ISSO, EU TENHO CAMA EM CASA, UÉ.

Ser professor é já começar a aula dando aquela respirada funda e, depois de relaxado, dizendo: – OK, já podem guardar o celular que a aula vai começar. Com o tempo, a gente percebe que não comprar brigas desnecessárias com as pessoas é essencial para nosso bem estar quotidiano. E também percebe que o pior, para nossa saúde emocional e física, é comprar briga com adolescente que está louco para medir forças com você. Então, é de bom tom e mais saudável sempre relevar e retribuir com gentileza. Ter o famoso jogo de cintura.

A cada ano que passa, percebo incoerências em muitas coisas, em mim, no ambiente escolar e nos alunos. Eu carrego comigo meus questionamentos de caráter e se eu, de fato, sigo fazendo meu trabalho com qualidade, isto é, ensinar sem provocar – em meus alunos – um espaço pior ou mais agressivo do que eles já estão inseridos entre os muros escolares. Tendo isso em vista, tento ao máximo ser solícito e dar atenção a todos, na medida do possível, mesmo quando o assunto não se refere ao meu conteúdo.

Num outro dia, entre o tempo designado para fazer um exercício em sala, Juquinha me pergunta o que é PÃO COM OVO, e eu fico sem entender exatamente a que ele está se referindo, e perguntei a ele sobre o contexto. Ele me diz que a professora de geografia, um dia, sem mais, disse a ele que ele era muito BICHA PÃO COM OVO. E, de imediato, quase engasgo bebendo água. De verdade, eu segurei o riso, mas depois lembrei da minha quarta série: enquanto os meninos da minha sala queriam jogar bola, falar de pipa, ou já se divertirem buscando a palavra “sexo” ou “pênis” no dicionário, eu só queria desenhar os – já famosos – Pokémons e me divertir com uns brindes que eu ganhava numa revista dessas aleatórias com brinquedinhos didáticos.

Para minha professora da quarta série isso era um problema, porque nos intervalos da aula, eu queria pintar meus Pokémons, arriscar misturar canetinha com lápis de cor ou até derreter um giz de cera para criar relevo (tinha aprendido com meu pai, já que o mesmo adorava pintura e me ensinava coisas interessantes – aquela fase em que nosso pai é o maior herói de todos), e, consequentemente, eu acabava voltando para casa com meu uniforme sujo. Isso incomodava minha professora, que me apelidou de “Bruno Jardim”. Óbvio que quando uma professora joga no ar a piada, no dia seguinte eu já estava sendo o BRUNO JARDIM para minha turma toda.

ilustraToda semana minha mãe estava na escola, por algum motivo. Eu era o que a minha professora mais insistia em não gostar. Os assuntos das reclamações com minha mãe sempre começavam com: NÃO É À-TOA QUE OS ALUNOS O CHAMAM DE BRUNO JARDIM. Em casa, minha mãe gritava comigo e me repreendia dizendo o quanto ficava envergonhada por toda a situação, e ainda ser chamada na escola para esses assuntos comportamentais. No ambiente diário da sala de aula, eu demorei a perceber que eu provocava um tipo de repulsa para minha professora, ao contrário da representante da turma que despertava um tipo de fascinação, lembro que dizia: Fulana, minha vida foi igual à sua, tive que amadurecer cedo para cuidar dos meus irmãos, escrevia em saco de pão usado na minha época de escola, já que minha família não tinha dinheiro para comprar caderno. E, é óbvio que a Fulana não ia com minha cara e adorava mostrar sua arrogância em me olhar por cima como se fosse o exemplo de superação que todos devêssemos seguir, além de abusar de seus “pequenos-poderes”. Como representante, parecia se deliciar ao dizer com certo gosto incompreensível, ao menos para mim, naquela idade, em alto e bom som:

– BRUNO COUTO, ZERO!

Minha nota de comportamento na voz de Fulana sempre ecoava numa frustração na minha cabeça de quem não entendia nada do que se seguia ali e nem pensava em como conseguir explicar o que acontecia para minha mãe, que até no psicólogo me colocou por orientação dessa mesma professora. Mas coisas aconteciam que nem minha mãe imaginava: a professora confiscava, de dentro da minha mochila, meus brindes de revistas, uma caneta de três cores, presentes de um tio, e se incomodava se visse um desenho meu numa folha qualquer do meu caderno. Quanto mais a minha professora me ridicularizava como Bruno Jardim na sala de aula, mais eu me distanciava da minha mãe. Quando a gente se ofende com a primeira chacota e ouve “VAI CONTAR PARA MAMÃE, VAI?”, entendemos que deixar de ser criança é não depender dos pais.

Nessa fase, aprendi a lição mais suja da escola. Você pode ser a piada ou fazer dos outros a piada. Para fazer os outros de piada, você precisa sempre ser o mesmo, participar como ninguém do “exército do padrãozinho”, quer dizer que se o moço da barbearia cortar errado seu cabelo ou deixar um pouco diferente do habitual, ou se seu cabelo está grande demais no dia seguinte, você é a piada. Para uma menina, até colocar o cabelo de um lado diferente, ou um batom mais chamativo, já é alvo para piadas e comentários desagradáveis.

“PÃO COM OVO É AQUILO QUE TODO MUNDO COME E NINGUÉM SENTE ORGULHO!”, disse um dos alunos tirando sarro de Juquinha. Arrisco dizer que foram poucas pessoas que, de fato, não sofreram algum tipo de descriminação e que a escola foi um lugar acolhedor. Talvez me falte conhecer mais gente, mas até então, todas as pessoas que conheci na vida para quem a escola não foi um ambiente totalmente desagradável foram pessoas com sua sexualidade bem demarcada, brancas, e com aqueles traços faciais bem “europatizados”. Porque não basta ser só branco, você não pode ter uma cabeça achatada, olhos esbugalhados, usar óculos, ou qualquer coisa que diga que você é diferente como um sotaque mais cantado como o das pessoas das regiões do norte do Brasil.

Por todas essas lembranças, foi ouvindo Juquinha dizer que iria arranhar o carro da professora de Geografia que realmente comecei a refletir sobre o significado do espaço escolar e o que realmente acontecia no mundo longe do plano imaginado pelas pessoas de que seria o espaço do tal aprendizado. Eu acreditei muito tempo no discurso que vendem sobre a escola, O MAIOR ESPAÇO DE SOCIALIZAÇÃO DE UM INDIVÍDUO. Porém, parafraseio Clarice Lispector que dizia que a gente não impede as galinhas de serem galinhas, que, portanto, não há como impedir uma criança de ser criança. Isto é, SEU FILHO VAI SOCIALIZAR EM QUALQUER AMBIENTE EM QUE VOCÊ O DEIXE SOLTO. Seja no playgraund do seu prédio ou num grupo do WhatsApp sobre Demi Lovato, como minha prima de 7 anos.

Até uns anos atrás, eu dizia com orgulho que a escola me fez forte, mas atualmente eu só sinto vergonha de algum dia ter acreditado nessa estrutura psicológica que a escola me criou. Eu tive que ser a pior das pessoas para passar despercebido com meus defeitos físicos e/ou com minha personalidade que tinha que ser cada dia mais uniforme com as demais. Isso quer dizer que tive que aprender a não me importar com os comentários alheios e, ao mesmo tempo, escolher o alvo mais fraco para ser o “zoador” e não o “zoado”. Por tudo isso, não há um dia em que eu não me arrependa de ter mexido com a autoestima de alguém, por ter praticado bullying excessivamente com pessoas que nem mereciam de fato aquela crueldade um mundo em que me inseriram, sem minha autorização; simplesmente me jogaram ali, mas “Deus sabe a minha confissão” e felizmente não há o quê perdoar.

A infância, sem teorizar muito ou romantizar, é o período mais importante de uma criança. É nessa fase em que seu filho, primo, afilhado, está descobrindo um leque de possibilidades e muito sobre “o quê é o mundo”. Isso quer dizer que ele/ela vai aprender as quatro operações básicas da matemática, os limites do seu corpo e as frustrações de um amor não correspondido. E, se tiver sorte, quem sabe, um amor correspondido. Mas o ponto em que quero chegar é que, na escola, ele só vai ter frustrações. Diferente do que muita gente acredita, A VIDA NÃO PRECISA SER UM BALDE DE ÁGUA FRIA O TEMPO INTEIRO.

Quem é professor sabe que, se você pede para um adolescente ler um texto qualquer em sala de aula, ele nunca vai se oferecer ou fazer isso de bom grado, eu arrisco afirmar que é por simples medo de se expor, de mostrar suas incapacidades num espaço que, a ­­­­princípio, deveria ser o espaço do erro. Infelizmente a sala de aula é o espaço do humor mais “imbecilóide” que existe. Talvez, até mais idiota que aqueles programas dominicais com vídeos de gente dos anos 80 ou 90 com tombos e escorregões. Ora, se um professor fala a palavra “sexo”, “maconha”, e talvez se um poema te direcionar para uma palavra como “grosso”, você já teve um desvio de atenção e umas gargalhadas de um humor bem característico dessa fase e aquele coral de “hummmmmmm”…

A escola, na minha idealização romântica, de gente que cresceu na periferia de uma grande cidade, deveria ser o espaço de integração e de equivalência, ou seja, a escola deveria proporcionar um ensino que permitisse mudar de classe social se for o seu desejo atingir uma profissão. Quero dizer que: se eu sonho em ser médico, a escola deveria me oferecer o conhecimento que preciso para competir numa carreira universitária de qualidade. Mas, atualmente, a maioria das escolas não consegue exercer o básico, que é ensinar. Afirmo dizer que a escola virou o coringa que as instituições se utilizaram para suprimir muitas faltas sociais e que hoje se tornou apenas um depósito de gente.

Se você cria uma campanha de vacinação no país, você começa o serviço social no ambiente escolar. Para isso, você retira uma turma no horário de classe para ser vacinado. Ora, para você retirar uma turma e os colocar em ordem para serem atendidos num outro local, mesmo no espaço da escola, só nessa logística, você perdeu vinte minutos NO MÍNIMO, MAIS O ATO de reorganizá-los para regressarem à sala (sem contar o tempo que você perde com os alunos sendo vacinados). E, se você é professor, por mais que você tente, se esforce, você já percebeu que: o que você planejou naquele ano letivo não será totalmente cumprido por falta de tempo, porque o conteúdo sempre é muito extenso e existem os feriados, pontos facultativos, e até uma paralisação de um dia. Tudo isso te faz pausar o conteúdo, respirar fundo e reorganizar mais uma vez seu planejamento.

O que quero dizer é que atribuem muitas funções à escola. Outro exemplo é o da nutrição: muito se fala nas atuais propagandas políticas, sobre a promessa de uma escola com até três refeições diárias. Mas, Bruno, você quer deixar as crianças de nosso país desnutridas, logo num país tão problemático como o nosso? (Alguém, com certeza, deve estar se perguntando) E, eu respondo: Não! De jeito nenhum! Mas, querem atribuir à escola outras funções que não somente lhe diz respeito, e vão entupindo e entupindo de outras funções e as aulas cada vez mais perdendo espaço, num ano letivo que já é pequeno para tamanho conteúdo estipulado.

Esses dias, eu disse à minha aluna do nono ano que se eu tivesse dinheiro e tempo, eu detestaria que meu filho frequentasse uma escola, que achava o ambiente escolar horrível, e ela ficou horrorizada, dizendo que a escola é essencial para socialização das pessoas! (Esse clichê que se repete e repete…)

– Eu realmente acredito que seja – disse a ela – mas olha, só hoje você disse que a menina da sua frente tem o cabelo de vassoura e que o menino – que até agora, tenho observado está sendo muito gentil com você “- Ele tá sendo a pessoa mais amorosa, terna e paciente em te dirigir a palavra. Mas, por ter um jeito diferente dos outros meninos, você fez piadas e está o tempo inteiro gritando e perguntando a ele se ele namoraria sua prima, só para ouvir ele se esquivar das suas perguntas.” Então, ela fez um gesto pra mim colocando a mão na boca e sussurrando:

– MAS ELE É “VIADO”!

Sem muito que pensar disse: – que bom para ele, mas olha como você fica incomodada, e não entende nem porque você quer tornar a vida dele uma chacota! Porque eu realmente não sei o que você quer ouvir dele! Já que tem certas coisas que já estão claras para você. Mas sabe qual é a verdade? A escola é um lugar só para você passar um tempo, para que seus pais trabalhem, enquanto você traz todos os preconceitos da sua família para dentro de uma sala com mais outros trinta alunos, com mais outros preconceitos tentando padronizar tudo que é diferente do que você já viu, e se eu pudesse tornar esse ambiente opcional para meu filho, eu me sentiria muito realizado por ele não estar trancado numa sala com tanto preconceito e agressividade num momento tão delicado de descobertas dele! E o pior: com professores que talvez venham até com os seus preconceitos e falta de capacitação.

– A professora de religião disse que não ia se estressar com o Joãozinho porque ele iria carregar peso no Guanabara. Cortou-me a aluna e, quando questionada porque a professora disse aquilo, ela afirmou que o Joãozinho queria ouvir um pouco sobre Ogum. Me afirmou que até entendia a grosseria da professora, porque a professora era evangélica e era muita falta de respeito dele perguntar coisas do tipo à professora que ministra uma disciplina chamada “religião”. Ela conclui dizendo que estava brincando sobre o cabelo da aluna, e com o outro aluno. Eu continuei na tecla, afirmei que a brincadeira só tinha graça para ela, e que os dois levaram numa boa porque na escola se você leva na raiva, “a piada/brincadeira” fica mais intensa. E a aluna vítima da piada concordou, dizendo: “Pois é” enquanto escutava eu chamando a atenção da colega.

O que acontece na adolescência? Quando criança, queremos manipular os fantoches, atuar, correr, cantar, brincar de ser a bruxa no intervalo da escola, o príncipe, até a árvore do teatrinho ou segurar a pasta da professora como quem diz “fui o escolhido, sou o tal”. Mas, como dito ao longo do texto, os alunos sentem vergonha de ler um simples poema ou proposta de redação. O que de fato acontece com a gente nesse percurso? Uma socialização que nos deixa com vergonha de ser o que somos.

Em algum momento pensei que talvez fosse meu meio inserido e que em outras escolas de classes sociais mais altas, as humilhações talvez não existissem. Quem sabe há escolas com outras propostas? Cheguei até a questionar um amigo muito querido que concluiu sua formação escolar num conceituado colégio do Rio de Janeiro, só para homens, além de ser uma das instituições de ensino mais caras, uma das melhores do país. Esse amigo me disse que quando não conjugava um dos verbos em francês corretamente, o professor de mau humor gritava: “EU VIADINHO, É MELHOR TU DECORAR ESSA PORRA.” Na frente de todos os alunos.

Eu só consigo perceber uma estrutura muitas vezes precária, em que há intolerância religiosa, excesso de funções, bullying entre os alunos, e professores que não têm a mínima capacidade e estrutura emocional para estar dentro de uma sala de aula, além da falta de qualificação e preparo desses educadores que não têm o domínio do conteúdo para ensinar o que lhe é designado. A escola é um ambiente de transformações e isso é inquestionável. Todavia, para meu êxito escolar, foi preciso muita autodeterminação para que eu seguisse com o sonho de ter uma profissão. A escola em que estudei não me proporcionou um conhecimento para que eu ingressasse numa universidade sem recorrer a um curso pré-vestibular. E com o desejo de ter filhos, repenso atualmente qual é o melhor espaço para meu filho.

A ideia não é dizer que a escola não tem a sua importância, mas afirmar que para a formação que espero, não inclui saber que meu filho sofreu algum tipo de agressão no espaço de aprendizagem. Como educador, vejo que não quero um filho numa escola que só pense no resultado final da concorrência – numa posição de prestígio no vestibular – mas também não quero deixá-lo num ambiente que não os capacite para um concurso. As opções nos remetem sempre a um ideal que só se concretiza com a participação ativa dos pais. Eu gostaria muito de tornar a escola um espaço opcional na vida de meus filhos, não uma sentença de obrigação de que a escola é fundamental para a vida deles. Não acredito que o aprendizado deveria vir em troca de comentários desagradáveis de gente que não quero perto dos meus filhos. A vida já é suficientemente agressiva no ambiente familiar, para quê deixar as pessoas que mais amamos de frente a pessoas que só cruzarão na vida deles num determinado período?

Como professor, como dito anteriormente, eu tento tornar esse ambiente um lugar mais agradável para meus alunos, mas como reagir quando você vê um aluno virando o olho e visivelmente desconfortável todas as vezes em que um menino com trejeitos afeminados tenta participar da aula? Esse aluno incomodado é justamente o que menos tem interesse no que está sendo dito por mim, mas vejo no olhar dele um incômodo que talvez ele mesmo não saiba que sente. O menino afeminado é o mais gentil da turma e o que provoca mais incômodos de gente que não quer participar da aula. Eu, como professor, deveria chamar os pais do aluno desinteressado e explicar que não entendo a maneira como seu filho revira o olho com uma feição de nojo quando o colega de sala levanta para escrever no quadro?

Ser professor é ver muitas coisas, abraçar algumas, ponderar em outras, e se calar muitas vezes. Uma educação dentro de casa é o que desejo aos meus filhos para que eles nunca sintam vergonha do que quer que eles queiram ser, mas se for um desejo deles o espaço escolar ou falta de opção financeira, nunca esquecer que estimular a conversa dentro de casa, participar ativamente das propostas da escola é o melhor que podemos fazer como pais.

 

Bruno Oliveira Couto: Professor de português, que tenta jogar a sua voz no mundo, no tempo e no vento, mas que não atende ao telefone fixo.