A Escola como um espaço de vida

Por Ana Lúcia Cardoso Garcia de Freitas

O que é educar para a vida? O que se quer quando se educa? Muda a cultura, muda a  educação ? E a escola, muda também? O que muda e o que se mantém como necessário? Como se ensina? O que se ensina, quando se quer ensinar? Cabe à escola ensinar ou educar? Os eletrônicos educam? Essas e outras tantas perguntas, fazem parte do repertório de questões  que povoam o universo escolar, interrogam os educadores em sua práxis, levando-os a buscar, não sem angústia e com esforço, respostas, ainda que parciais, para lidar com o inacabamento próprio do ser humano no que se refere ao saber/conhecimento. A experiência de ensinar-aprender, coloca o educador defronte ao seu inacabamento, convocando-o a criar, inventar um saber-fazer com os impasses e imprevistos inerentes a toda a atividade humana.

O inacabamento, condição estrutural do sujeito humano, está ligado à sua natureza de ser falante. Freud em seu texto: “O mal estar na cultura”, ressalta que cada ser humano ao nascer renuncia a uma cota de satisfação para entrar no mundo das trocas simbólicas, na cultura. Sua inserção se faz por meio das trocas simbólicas que permeiam os cuidados maternos. Cabe à mãe, ou quem cuida, interpretar, conferir um sentido às necessidades do bebê. As falas endereçadas à criança, dizem algo do desejo dos pais em relação a esse filho, sujeito que começa a se constituir. Assim se inicia uma educação. Os pais são responsáveis pela transmissão da cultura que, para a psicanálise, é sinônimo de educação. O que, nesse momento tão primitivo da vida, pode ser transmitido pelos pais? Resposta: a inserção do sujeito na dialética de trocas simbólicas, o inclui na condição humana, retirando-o da condição animal, conferindo uma marca simbólica representativa do desejo destes que o conceberam. Essa inserção surge de uma operação subjetiva causada pela ”falha da mãe”, pelo mal entendido da mãe: ou a mãe dá para o choro um sentido que não responde de imediato à necessidade do filho, ou por demorar-se em atendê-lo, ou, ou… Enfim, uma vez que o filho não é atendido prontamente, resta-lhe a experiência de renunciar a um prazer imediato, lidar com a frustração, a aprendizagem de esperar. Começa aí  uma semente do que vem a ser a aprendizagem de conviver com o outro. Podemos pensar que aqui também reside a gênese do que os pais transmitem para os filhos: seu inacabamento, sua incompletude estrutural. Assim como eles, os filhos  precisarão aprender a como “ se virar”  com a sua falta –  condição de serem sujeitos desejantes. J. Lacan, psicanalista, sublinha: “Somos seres desejantes, destinados à incompletude e isso nos faz caminhar”.

Uma criança dá seus primeiros passos ancorados pelo que os pais lhe transmitem: ideais e valores ético-morais. Essa transmissão construída ao longo de gerações , com a qual se  identificará, será o suporte do que ela ‘virá- a- ser’ em sua trajetória de vida. A voz dos pais, a dos educadores e de tantos outros que podem ter marcado a vida de uma criança, contribui, segundo Freud, para a formação do ideal de eu de um sujeito. A criança é uma exímia observadora daqueles que representam para ela figuras de autoridade. Em suas brincadeiras os imitam, repetindo suas falas, gestos, atitudes, numa tentativa de traduzi-los, recolhendo as significações que os orientam na construção de sua forma de ser e estar no mundo. Na exploração do mundo, no faz de conta, reinventa a vida e ao reinventar, a criança constrói uma leitura de vida e de mundo. Brincar é coisa séria.

Como pensar as figuras de autoridade que representam o mundo adulto, em tempos onde as formas de autoridade tradicionais estão em crise? Segundo o psicanalista L. Gorostiza (2005):  “…a função do pai é a de oferecer pontos de ancoragem ao sujeito. Por um lado, um ponto  de ancoragem identificador. Por outro, um ponto de onde se regulam seus modos de    satisfação. Sem esses pontos de apoio e regulação, fonte de produção de sentido, o sujeito cai  – literalmente – à deriva.”  Diante da incumbência reguladora e de referência que a função paterna adquire para o sujeito em sua formação, não  podemos renunciar a uma educação. Aos adultos, fica a responsabilidade de assumirem a posição de transmissão às novas gerações. A desistência e/ou a omissão de estar neste lugar de referência, coloca as crianças à deriva, sem uma bússola que os oriente na construção de sua história. Cabe esclarecer que o conceito psicanalítico, “ função paterna “, não se refere apenas ao pai e, sim, a  qualquer pessoa que a venha representar para um sujeito esta função. Assim sendo ela pode ser encarnada pelo pai, a mãe, o avô, um tio, a escola, um professor e etc.. Educar refere-se à função operada pelos adultos, pais, professores e substitutos, cujo trabalho é permitir que a criança ingresse na cultura, constituindo-se como  sujeito exposto à Lei e  aos princípios ético-morais que permeiam o laço social.

Nesta perspectiva, em relação à educação das crianças, os professores têm uma função extensiva à dos pais. Em que medida? Na justa medida em que o professor conjuga na sua função, o desejo de educar com o desejo de ensinar. O desejo de educar refere-se à sua disponibilidade subjetiva, oferecendo-se como suporte identificador, tanto na transmissão de saberes relacionados a aprendizagens da convivência com o outro, como também, na apresentação das várias leituras de mundo, apostando que, na criança, há um sujeito em formação. O exercício da convivência que está presente na escola, por ser um espaço coletivo, proporciona experiências que permitem à criança em formação, a experiência da alteridade, a descentralização necessária ao crescimento, o respeito às diferenças, a aprendizagem do consenso, da generosidade, da gentileza, enfim, valores necessários à convivência humana. No que se refere ao desejo de ensinar, o professor sustenta a função simbólica de transmissão dos conhecimentos socialmente compartilhados, cultura e ciência, o acervo construído pelo homem ao longo da civilização, perpetuando-o. Essa conjunção – desejo de educar/desejo de ensinar, está intrinsecamente ligado ao que a escola conjuga no seu projeto: instrução e formação, ou, transmissão de conhecimentos e formação cidadã.

Então, família e escola partilham/compartilham, representantes que são do mundo dos adultos, da educação das crianças. A família como primeiro universo de referência, experimenta com a entrada de seu filho na escola, uma quebra na sua hegemonia, na medida em que a escola põe em prática valores coletivos que confrontarão valores individuais. Essa tensão entre o ponto de vista individual e o coletivo está no cerne da convivência humana. O diálogo é o meio pelo qual podemos rever e construir posições que possam contemplar o que interessa tanto à escola quanto à família – a educação das crianças.

Como espaço vivo de convivência e aprendizagens, a escola deve ensinar oferecendo instrumentos para o aluno aprender a olhar e pensar, não apenas os conteúdos escolares, mas também , as experiências de vida que ali se experimentam, os encontros/desencontros, os conflitos, as tensões , os dilemas éticos, as divergências/convergências, as descobertas e  as alegrias. A escola não pode se abster de ser um espaço de circulação de ideias, de construção coletiva, onde professor e a aluno possam dialogar em busca de uma sala de aula humana e criativa. Saber fazer escola é poder acolher a vida que ali se aloja, buscando com inteligência e sensibilidade escutar e dar voz aos atores principais da cena escolar: professores e alunos.

Ana Lúcia Garcia de Freitas
Psicanalista
Mestre em Psicologia PUC-Rio
Psicóloga Escolar do Colégio Gaylussac- Niterói
Professora da Faculdade de Psicologia Maria Tereza- Niterói