É Possível Educar sem Culpa?

Rita de Cássia Melo
Daniela Santos

 

Antigamente, a educação das crianças era extremamente repressora, autoritária. Os pais eram inflexíveis e acreditavam saber exatamente o que estavam fazendo, e fazer o melhor.
Nos anos 60, surgiu a ideia: “é proibido proibir”. A criança deveria exercitar suas emoções e potencialidades para se tornar um adulto criativo e crítico. A popularização dos estudos sobre desenvolvimento infantil também levou a sociedade a questionar e rejeitar o modelo repressor de educação. Por terem acesso a conhecimentos de especialistas, os pais hoje em dia sentem sua grande responsabilidade no desenvolvimento da criança. Vale ressaltar, no entanto, que os termos da psicologia são muitas vezes utilizados de forma exagerada e sensacionalista pela mídia. A divulgação de teorias tem sido feita de forma determinista, e como verdade absoluta, não como uma entre possíveis visões. Porém, a formação da criança é influenciada por inúmeros fatores.
Nesse período, divulgou-se a ideia de que a repressão deixaria traumas irreversíveis. Os pais passaram a ter medo de prejudicar o desenvolvimento da criança sendo muito rígidos e a evitar dizer não, não colocando os limites necessários. O medo de traumatizar tira a espontaneidade e gera sentimento de culpa. Para não reproduzir o modelo repressor, acabam permitindo tudo. E a criança que pode tudo, acaba ficando sem referência nenhuma, tem dificuldade de incorporar regras sociais e respeitar o limite das outras pessoas, só faz o que quer.
Antigamente, a visão do futuro, da educação era como uma estrada com a terra bem firme, uma imagem sólida. Abandonamos esse modelo, mas nada foi colocado no lugar. Os pais ficaram sem um referencial, com papéis indefinidos, cheios de dúvidas, incapazes de atitudes claras com seus filhos. Os pais deixaram de ser os “senhores da relação”, mas também não alcançaram uma relação dialógica com os filhos. Houve uma inversão de papéis, passando a predominar a tirania dos filhos.
Se examinarmos a questão de forma abrangente, constatamos que a sociedade está vivendo uma grande crise de valores. De acordo com Zygmunt Bauman, vivemos em “tempos líquidos”, tudo muda rapidamente, nada é feito para durar. Hoje não há modelo de educação nem de família. Os papéis não são definidos como antes: pai provedor, mãe responsável pela casa e pelos filhos. As famílias se organizam de variadas maneiras. Por um lado, as relações são mais verdadeiras, aprendemos a respeitar as diferenças, abrimos maior espaço para o diálogo. Ninguém se prende mais a um determinado modelo de família por imposição social. No entanto, os valores se tornaram frágeis, elásticos, mutáveis. E o medo de errar faz com que as pessoas se tornem mais permissivas.
Segundo o Psicólogo Yves de La Taille, que escreve sobre a ética na atualidade, depois dos anos 80 passamos a desvalorizar o passado, visto como algo ultrapassado, e ver o progresso como algo destrutivo. Estamos vivendo no eterno presente, num mundo fragmentado. Vivemos de pequenas urgências, prazeres e necessidades imediatas. A moral é vista como algo negativo. Correlacionando ao pensamento do psicanalista César Ibrahim, percebemos que essa prisão no presente tem trazido outras consequências para a nossa sociedade. Vemos cada vez mais uma redução do período da infância e da idade adulta com uma larga ampliação do período da adolescência. A adolescência atualmente começa aos 9 anos e se estende aos 30… Os pais têm se comportado como “amigos” dos filhos, e muitas vezes como “irmãos”, eternos “adolescentes” que fazem só o que querem.
Outro fenômeno social importante foi a entrada da mulher no mercado de trabalho. Ter filhos, que antes era simplesmente uma consequência natural do casamento, passou a ser um “grande projeto”, muito bem planejado. Desta forma, muitos casais optam por ter apenas um filho, esperado com grande expectativa: o/a “príncipe/princesa” da família. Mas os pais ainda têm que deixá-lo com outras pessoas para trabalhar, e se sentem culpados por isso. E a culpa faz com que tenham dificuldades de impor limites.
Qual é o custo social dessa crise de valores? Como se torna o adolescente que não aprendeu a ter limites? Que pessoas estamos formando? Serão cidadãos conscientes, cooperativos, solidários, sociáveis? A educadora Tânia Zagury, no livro “Sem padecer no paraíso”, ressalta que a criança deve ser LIVRE PARA SE EXPRESSAR, mas não SOLTA PARA AGIR. É preciso não confundir liberdade com permissividade. Os pais muitas vezes têm uma visão negativa do exercício do poder. Eles DEVEM TER PODER, pois a criança como um ser em formação ainda não está habilitada a conduzir sozinha sua vida, ela precisa que os adultos a “governem”. A segurança das crianças depende do poder decisório dos adultos. Necessidades da criança devem ser atendidas, exigências não.
A culpa paralisa ou faz com que os pais se mobilizem no sentido de promover eternas compensações por se sentirem sempre “em falta” com o filho. É preciso confiar na qualidade do tempo vivenciado com a criança. É preciso refletir sobre a educação dos filhos e plantar hoje em pequenas ações e na firmeza dos limites, os valores que queremos que tenham no futuro. Talvez não seja possível educar sem experimentar o sentimento de culpa, mas certamente é possível educar sem ser movido pela culpa e sim, por princípios, valores, ética.

 

Rita Melo é Terapeuta Cognitivo-Comportamental, Crianças e Adolescentes, Psicomotricista, Psicóloga Escolar e Consultora em Desenvolvimento Infantil.
Daniela Santos é Psicóloga, Psicopedagoga e Psicomotricista, Coordenadora Pedagógica de Escolas de Educação Infantil e Consultora em Desenvolvimento Infantil .